“A natureza demonstra que a mulher não é mais dona do seu corpo quando a criança é concebida”. O trecho, extraído de um texto amparado na Bíblia e publicado em 2018, na revista especializada Conceito Jurídico, pelo jurista e professor Ives Gandra Martins, é amplamente reproduzido no campo jurídico conservador. Gandra é fundador do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR), uma instituição que realiza palestras, cursos e fomenta publicações sob uma perspectiva religiosa. O IBDR tem atuado em rede com pelo menos outras 19 associações jurídicas católicas, em atividade no Brasil, para impedir a discriminalização do aborto.
A afirmação é feita no estudo inédito “Cartografia dos Catolicismos Jurídicos”, ao qual a Agência Pública teve acesso com exclusividade. O levantamento é realizado por um grupo de trabalho do Instituto de Estudos da Religião (ISER), que observa a relevância da Igreja e de atores católicos na consolidação do conservadorismo no Brasil.
Essas instituições atuam nos tribunais, e para além deles, com articulações que passam tanto pela atuação legislativa quanto pela incidência no Congresso Nacional. A pesquisa também localizou conexões dessas redes que se estendem a instâncias educacionais e parcerias com organizações sociais.
Um exemplo prático é a atuação em pautas que propõem avanços para o aborto legal no Brasil, como a ADPF 442, que discute a descriminalização da interrupção voluntária até o terceiro mês de gestação. Sete dos centros citados no levantamento do ISER peticionaram ingresso comoamicus curiae(amigo da Corte) na ADPF 442. A União dos Juristas Católicos de São Paulo (UJUCASP) e Ives Gandra conseguiram ingressar.
O julgamento da ADPF 442 pode ser retomado em breve no STF, caso a ministra Rosa Weber decidir incluir a pauta antes de deixar o cargo, em outubro. No fim de agosto, 20 entidades cristãs, entre elas centros jurídicos católicos, como o IBDR; o Instituto Ives Gandra; a União dos Juristas Católicos da Arquidiocese de Goiânia; assinaram conjuntamente uma carta aberta ao STF, com pedido de providências ao Congresso Nacional, onde dizem ser “cientificamente comprovado que a vida se inicia no momento da fecundação.” O documento ainda diz que “o STF entrar no mérito da ADPF significaria, para a Suprema Corte, assumir a posição de legislador, a fim de descriminalizar um ato contra o maior bem de todos que é a vida, claramente protegida pela Constituição Federal”.
Em 2022, quando uma menina de 11 anos em Santa Catarina enfrentou entraves jurídicos para a realização de um aborto legal, após sofrer violência sexual, seteentidades católicas citadas na pesquisa do ISER assinaram juntas uma nota na qual criticam a “pressão midiática” que deu visibilidade ao caso.
Este ano, quatro uniões católicas voltaram a se reunir para a publicação de uma “nota conjunta em defesa da vida”, na qual repudiam “recentes iniciativas do Governo Federal, por meio do Ministério da Saúde, quanto à flexibilização do aborto”. O documento refere-se à desvinculação do Estado Brasileiro da declaração do Consenso de Genebra, um documento assinado por vários países, promovido no governo Trump, e que é contrário ao aborto. O Brasil fez parte da iniciativa no governo Bolsonaro.
Segundo as pesquisadoras Ana Carolina Marsicano e Tabata Tesser, do ISER, as entidades jurídicas católicas mapeadas agem em grupo contra o avanço de uma agenda de direitos, oferecendo assessoramento e dialogando com atores do campo político. “Elas também participam de instâncias de poder”, diz Ana Carolina Marsicano. “As organizações mapeadas têm como membros juízes, advogados, integrantes do Ministério Público e políticos”, completa.