Aos cinco anos viu a mãe se suicidar na sua frente. Foi marginal. Mas conseguiu que um presidente o exigisse na Copa do Mundo. Dario
Teresópolis
“Eu passei pela pior dor que ninguém neste mundo deveria passar. A minha mãe tinha sérios problemas mentais. Havia dias que ela colocava todos os vestidos que tinha. Um encima do outro. E saía para a rua. Em outros, saía pelada.
“O meu pai era eletricista da Light, mas analfabeto. Não sabia o que fazer.
“Até que um dia, minha mãe jogou querosene em todo o seu corpo e ateou fogo. Eu corri para abraçá-la, para tentar protegê-la. Se ela fosse morrer, eu queria morrer com ela. Só que, mesmo louca, nesta hora foi mais forte o amor de mãe. E ela percebeu o que acontecia e e me empurrou com toda a força para longe, para uma vala. E eu a vi morrer.
“Tinha cinco anos.”
“Meu pai não soube o que fazer, ao se ver sozinho, com três meninos para criar. Nos colocou na Febem (atual Fundação Casa). Eu passei a conviver com bandidos. Pude colocar para fora toda minha revolta, meu sofrimento. Fiquei revoltado. E passei a ser o pior dos bandidos da Febem do Rio de Janeiro.
“Andava com facas e pedras no bolso. Qualquer discussão era desculpa para jogar uma pedra na cabeça de alguém. Se houvesse briga, puxava a faca. E enfiava nas pernas, na bunda de quem viesse para cima. Eu gostava da sensação de ferir os outros, ver o sangue sair.
“E conforme fui crescendo, fugia da Febem para roubar. Não tinha nada a perder. Tinha a certeza que a minha vida seria a do crime. Roubei e machuquei muita gente. Fui jurado de morte por um policial que me prendeu três vezes e levou para a Febem. Para ele, não tinha mais jeito. E a solução era me matar. Consegui fugir dele. Fiquei dias na mata escondido, com medo.
“Eu tinha um amigo, amigo, não, um comparsa que se chamava Índio. Nós assaltavamos juntos e éramos muito violentos. Até que um dia fomos assaltar um português. Quando ele nos viu com as facas, sacou um revólver. Saímos correndo, desesperados. Eu corri em zigue-zague. O Índio correu em linha reta. Tomou um tiro na nuca e caiu morto do meu lado. Eu consegui escapar. E chorando muito, percebi que este era o meu futuro.
“Pensei que o único caminho era me matar. Não aguentaria mais seguir naquela vida.
“Até que uma noite, fui dormir. E a minha mãe apareceu em sonho. Ela estava linda, de branco. E me disse para eu acreditasse, lutasse para ter uma vida decente. E que tudo daria certo. Que eu nunca parasse de acreditar.
“Mesmo assim, não tinha o que fazer. No dia seguinte, estava morrendo de fomme. Vi duas mulheres passando. Fui assaltá-las. Elas gritaram. Havia policiais por perto que eu não tinha visto. Fui levado de novo para a Febem.
“Tinha 17 para 18 anos anos. E havia o funcionário que mandava em tudo por lá. E ele gostava muito de futebol. Eu nunca tinha parado para jogar. Mas corria muito, aprendi fugindo da polícia. E saltava alto, sabia disso quando roubava coisas nas janelas dos outros. Decidi fazer o teste para jogar no time da Febem.
“Era magro, esquelético. Mas puro músculo. Eu não tinha noção nenhuma de futebol. Só sabia que tinha de chutar ou empurrar a porra da bola para o gol. E era ruim demais. Logo passaram a me chamar de pereba. Tropeçava em cima da bola. Achava que tinha de chutar com o dedao do pé. E tome bicuda para tudo o quanto era lado.
“O chefe da Febem ria da minha ruindade mas percebeu que eu ganhava todas dos zagueiros na corrida ou pelo alto. Eu só sabia que tinha de fazer o gol, de qualquer jeito. Ele viu que a minha habilidade era nula, mas minha força e vontade de fazer gol eram fora do comum. E me colocou como titular do time. O futebol mudou minha vida. Me salvou da marginalidade. Me tirou do mundo do crime.
“Tenho certeza que estaria morto se não fosse o futebol.”
O depoimento emocionado é do carioca Dario José dos Santos, que adora o apelido Dadá Maravilha. Aos 72 anos, o futebol segue sendo sua principal fonte de renda. É comentarista de uma emissora de tevê em Belo Horizonte. E quando é levado a falar sério, sair do personagem brincalhão que criou para se destacar, mostra sensatez surpreendente.
E sempre procura sorrir.
Mas sua alegria é triste.
Dario, o que você acha deste distanciamento da Seleção da torcida? Você viu o sofrimento dos torcedores comuns que vieram para a Granja Comary e foram barrados, atrás das cercas. Crianças chorando que não puderam sequer ver os jogadores.
Eu fiquei muito triste. Passei pelo meio dessa gente barrada. Soube que alguns convidados especiais conversaram, pegaram autógrafos e tiraram fotografia com os jogadores. Isso é muito ruim. A Seleção Brasileira é um dos poucos motivos de alegria para o povo que é tão sofrido neste país.
Está tudo muito distante. Ninguém conhece de verdade o jogador, o que ele pensa, o que ele gosta. Ele já joga na Europa. Não vai ser ídolo de verdade.
Quando a gente estava na Seleção de 70, com o Pelé, Gerson, Rivellino, Tostão, os torcedores eram loucos para chegar perto. A coisa era simples. Por uma hora antes do último treino da semana, a torcida podia entrar. A gente conversava, dava autógrafos. Ninguém morria por causa disso. Esse contato, essa energia era algo muito bom.
O que falta é organização. Acho muito triste alguns terem privilégio de entrar e o povão não. Pior de tudo é os jogadores irem embora de helicóptero para não ter o menor contato com as pessoas que vão torcer desesperadas por eles na Copa do Mundo.
O Brasil vai ganhar a Copa do Mundo?
O Tite mudou a expectativa de todos. E via com medo com o fraco futebol da Seleção antes dele assumir. Tudo mudou. Acredito que ele conseguiu fazer o que o Zagallo fez com a gente em 1970. Ele tratou de unir o grupo. Tínhamos um timaço, com Pelé, Rivellino, Tostão, Gerson, Jairzinho. Se cada um jogasse por si, não iríamos a lugar nenhum.
O Tite fez o Neymar passar a entender que jogando pelo time, o Brasil fica muito mais forte. O Pelé, que era o Pelé, o melhor do mundo, fez a mesma coisa. E trouxemos a taça. O caminho é esse. Ninguém é mais importante que o time. O Neymar que é um garoto do bem já entendeu. Aí a nossa chance de conquista é grande. Vai ser difícil parar o Brasil.
Você representou a intervenção militar na Seleção. Inúmeros historiadores garantem que só disputou a Copa do Mundo por intervenção do ex-presidente e general Medici. E que Zagallo o convocou para agradá-lo.
Tenho de conviver com essa suspeita há quase 50 anos. É mentira. Quem tirou o João Saldanha da Seleção foi ele mesmo. Fez um monte de bobagem. Como quando, em 1969, eu era o artilheiro não só do Brasil, do mundo. Marquei 65 gols naquele ano. Fiz mais do que o melhor do mundo, o Pelé.
Foi quando um repórter perguntou a ele se eu tinha chance de ser convocado. Ele falou que eu era um perna de pau e tinha pelo menos dez centroavantes melhores do que eu. Fiquei puto. E falei que o João Saldanha iria engolir o que disse. E eu iria mostrar quem eu era em um amistoso que o Atlético Mineiro iria fazer com a Seleção, em Minas.
Os repórteres foram falar com os jogadores da Seleção. Disseram que eu faria o que quisesse, que o time era ruim e outras bobagens. Exageraram, mentiram. O jogo todo, o Carlos Alberto Torres passou me ameaçando, me caçando, me dando pontapés, querendo me quebrar.
Mas naquela partida eu estava louco. A torcida do Atlético estava enfurecida contra a Seleção. Nosso time era maravilhoso. O jogo estava 1 a 1. E eu fiz 2 a 1. Os mineiros ficaram orgulhosos, fui tratado como um rei.
O Medici que viu o jogo deu uma entrevista dizendo que não sabia como eu poderia ficar de fora da Seleção. Foi quando foram perguntar para o Saldanha o que ele achava da opinião do presidente. Ele respondeu que ele não escalava ministério e o presidente não iria escalar a Seleção.
Foi ele quem decidiu desafiar o presidente em público. E acabou perdendo o comando da Seleção. Quem me disse essa história foi o falecido presidente da Fifa, que era o presidente da CBD, João Havelange. Eu fui para a Copa do México porque mereci. Ninguém marcava mais gols do que eu naquela época. Nem mesmo o Pelé. Não foi um capricho, o Medici não gostava de mim à toa. Ele e o resto do Brasil sabia que era uma injustiça do João Saldanha eu estar de fora da Seleção. Uma birra comigo. Mas a vida me recompensou. Eu era marginal e acabei campeão mundial.
Você descobriu o poder da autopromoção no futebol brasileiro. Suas frases históricas e promessas de gols ganharam manchetes por toda a carreira.
Eu descobri o poder do microfone desde cedo. Sabia que a minha técnica era fraca. Eu não tive formação. Na idade que eu tinha para aprender a jogar, eu estava roubando. Enfiando faca, tirando sangue das pessoas, fugindo da polícia. Tanto que no começo da minha carreira, pedia para os jogadores não me jogarem a bola no peito ou na altura da canela. Não conseguia dominá-la. Tinha alguns que me passavam no peito, com curva, com efeito, para me queimar. Eu ficava louco.
Mas percebi a força da imprensa. E falei para a minha mulher. Vou me destacar falando o que ninguém espera. Prometendo e batizando gols.
Há várias frase que ficaram para sempre. “Melhor que Dadá, só Jesus Cristo.” “Não me venha com problemática que eu tenho a solucionática.” “Só existem três poderes no universo: Deus no Céu, o Papa no Vaticano e Dadá na grande área.” “Pelé, Garrincha e Dadá tinham que ser curriculum escolar.” “Quando eu saltava o zagueiro conseguia ver o número da minha chuteira.”
Só que fui melhorando muito. Graças ao treinamento. O Telê Santana falou que eu era o jogador que ele mais viu treinando na carreira. Compensei a minha juventude perdida. Dava cem chutes e cem cabeçadas dentro da área depois dos treinos. Não virei uma máquina de fazer gols, à toa. Fiz mais de 500. Quebrei o recorde de Pelé, que marcou oito gols, eu fiz dez em um mesmo jogo.
Só que falei demais. Quando tentei ser treinador, ninguém me levava a sério.
Qual sua maior alegria e maior tristeza na carreira?
As alegrias foram muitas. Estar no grupo que foi para o México ser tricampeão do mundo. Ganhar o Brasileiro com o Atlético Mineiro, com um gol decisivo meu. Ser o centroavante do melhor time que atuei, o Internacional, campeão do Brasil em 1975. Ser adorado por onde passei. A tristeza, de verdade, é nunca ter vestido a camisa do Corinthians. Não é sacanagem, não. Eu sou atleticano de coração, mas sempre tive uma enorme atração pelo Corinthians. Mas minha homenagem a esta admiração veio nos inúmeros gols que marquei contra os corintianos. Foi o clube que mais sofreu com Dadá.
Dario, você atuou em vários clubes populares e não está rico. Qual a sensação de ver que vários jogadores brasileiros estão milionários hoje em dia?
Olha, os tempos são outros. Eu joguei por times fortes, populares como o Atlético Mineiro, Flamengo, Internacional, Sport, Bahia e outros. Mas ganhava muito pouco em relação a hoje. Cheguei a ganhar por muito tempo dez salários mínimos. Por isso que os jogadores da minha geração ficam loucos quando sabem os salários atuais.
Se eu estivesse hoje com os meus 20 e poucos anos, seria uma grande estrela na Europa.
O meu salário?
Um real por mês.
Um real a mais do que o Neymar ganha…
Como é que conseguiu ter força para ser feliz tendo um início de vida tão sofrida?
A força está em todos nós. Tive muita sorte em ter o futebol para me regenerar, me tirar da revolta, da tristeza, da depressão. O que eu quero dizer vai para os pais: eles são a base de tudo. É preciso acreditar, ficar junto com os filhos, não importa a necessidade, a falta de dinheiro.
Meu pai era analfabeto, ignorante. Nos deixou na Febem. Mas, graças a Deus, eu e meus dois irmãos conseguimos sobreviver. Por sorte, eu não virei bandido ou fui morto pela polícia. Fiquei muito revoltado com o que tive de enfrentar, sozinho. Mas não só sobrevivi, me regenerei, como ainda pude ajudá-lo no início da minha carreira, pagar o seu enterro. E ajudar meus irmãos. A família é a base de tudo. Por mais humilde que ela seja.
Um filho não se abandona.
Eu sou alegre, mas não sou feliz…
FONTTE:R7